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Entrevista do Flea para a Bass Player Magazine (Abril 2022)

𝙊 𝙖𝙢𝙤𝙧 𝙚𝙨𝙩𝙖́ 𝙣𝙤 𝙖𝙧

O novo álbum do Red Hot Chili Peppers é um espetáculo para Flea, o qual foi recentemente votado como o melhor baixista do mundo – mas conforme conta a Joel McIver, ele não se vê assim.

“Nós trabalhamos duro”, escreveu o baixista do Red Hot Chili Peppers, Michael Balzary, no encarte do álbum Greatest Hits de 2004, bem distante dos shows de pequeno porte que a banda tinha duas décadas antes. Esse trabalho duro o levou à posição de melhor baixista em diversas votações dessa revista – apesar de, ele nos conta, não chegar nem perto do baixista que ele realmente quer ser. É nosso trabalho descobrir o porquê.

Um australiano que se mudou para a Califórnia ainda criança e superou uma infância difícil sobre a qual você pode ler em sua autobiografia de 2019, Acid For The Children; Flea – chamado assim pelo seu costume de ficar pulando no palco, como se você já não soubesse disso – é provavelmente o baixista mais notório de sua geração. Ele ganhou nessa categoria na BP’s 100 Greatest Bassists Poll algumas edições atrás por uma margem bem significativa, o que indica que muitos de vocês leitores concordariam com essa decisão.
Obcecado por jazz e punk rock desde novo, as linhas de baixo do Flea são habilidosas sem chegarem a ser pretenciosas, rápidas sem faltar emoção e cheias de sentimento hippie da Costa Oeste divido em partes iguais entre Larry Graham e Peter Hook. Isso fica evidente, mais do que em qualquer outro lugar, no novo álbum dos Chili Peppers, Unlimited Love, o qual o título se parece com uma comédia romântica, mas o seu conteúdo definitivamente merece sua atenção.

Porduzido por Rick Rubin e estrelando o primeiro trabalho com a banda desde 2009 de John Frusciante – quando ele foi substituído por Josh Klinghoffer, quem ele substituiu de volta dois anos atrás – Unlimited Love é um álbum do RHCP mais sutil do que a maioria dos fãs esperam. De forma geral mais calmo e menos agressivo do que seus álbuns mais conhecidos: Mother’s Milk (1989), Blood Sugar Sex Magik (1991) e Californication (1999), o álbum oferece muito espaço ao Flea para preencher com uma variedade de linhas de baixo – e isso ele sabe fazer. Nós sentamos para conversar com o eterno punk do funk para saber o que ele pensa hoje em 2022…

Você gravaram Unlimited Love como antigamente – em um estúdio?

Sim, com certeza. Não sabemos fazer de outro jeito. Gostamos de gravar ao vivo com todos tocando juntos na sala, olhando um para outro enquanto tocamos, sentindo o som um do outro da forma como sempre fizemos. Nós sentamos em uma sala de ensaio por meses a fio, compondo, tocando, rindo, discutindo e num determinado momento a coisa tomou forma e foi nutrida. Então nós vamos, gravamos e tocamos para o Rick. Ele fala suas opiniões e nós gravamos.

Eu acredito que quando tocam com o John Frusciante é como colocar um antigo par de tênis confortáveis ou estou errado?

Não, não, é isso mesmo. É uma afirmação correta. O John ficou fora por 10 anos e assim que começamos a tocar juntos de novo, foi simples como falar. Nós dois queríamos a mesma coisa e quando ela acontece estamos completamente cientes de que está acontecendo. É assim com nós quatro, não só comigo e John. E foi assim com o Josh também que é um músico incrível e não só incrível, mas também uma ótima pessoa – gentil, amoroso, generoso e prestativo, tanto musicalmente quanto de qualquer outra forma. São apenas diferentes pontos de vista e diferentes formas de enxergar o projeto. É uma questão da língua falada organicamente – e nós temos muito isso com o John. É algo que está ali, claramente, é simples e fácil.

E trabalhar com o Rick Rubin? Eu nunca sei se ele acaba com vocês no estúdio ou se ele só senta e se comporta como um guru impassivo.
Para ser honesto, eu não o vi muito. Eu acho que ele veio para um ensaio, ouviu e adorou. Ele nos dá dicas de arranjos e nos diz como ele acha que a essência da música pode ser melhor trasmitida. Como podemos entregar a melodia e o vocal ou se uma música precisa mudar o tom ou tempo, ou se ele acha que uma parte deve ser mais longa e outra ser abordada de um jeito diferente. Nós passamos por tudo isso com ele e encerramos. Ele e o Anthony foram para o Havaí gravar os vocais e John e eu ficamos para fazer quaisquer sobreposições necessárias para o baixo e para a guitarra. Ele incluiu um monte de notas de piano e backing vocals também.

Há muitas oportunidades para você nesse álbum – é um verdadeiro playground de baixistas nesse sentido.
Eu acho que estamos todos nesse mesmo barco, coletivamente. Eu vejo o ato de tocar baixo – especialmente relacionado ao Red Hot Chili Peppers – como um rio. Com as linhas de baixo e o jeito que quero tocá-las, eu quero viver minha vida de uma forma que me permita me abrir o suficiente para esse rio cósmico e espiritual fluir através de mim. Eu posso libertar esse sentimento para a direção que eu quiser – como quando precisa ser uma correnteza violenta ou quando precisa ser uma piscina calma e parada. Seja como eu for tocar os acordes, a melodia, o rítmo e a harmonia, eu vou estar solto, livre e deixar fluir. Eu acho que temos ótimos rítmos, acordes e melodias e eu só quero fluir através disso. Pode ser algo colaborativo ou pode ser algo hipnótico e repetitivo que criar aquele estado meditativo de hipnose que todos nós queremos na música, entende o que eu digo?
Independentemente de eu estar falando sobre o Discharge, Slayer ou Erik Satie ou tudo entre isso, é aquele sentimento humano que queremos, a conexão da humanidade que sentimos quando ouvimos uma música boa.

Como você aplica isso na prática?
Eu saio do caminho e deixo as coisas fluirem. Na maioria das vezes nesse álbum eu estou absorto , apenas deixando fluir. Cada música é diferente da próxima, cada decisão é diferente da próxima. Eu só estou sentindo a múscia e sentindo o que funciona e enquanto eu estiver focado e diligente como músico, tocando bastante, prestando atenção e sendo humilde, eu continuo aprendendo. Quando aparece uma oportunidade de tocar, depois de uma vida tocando, eu tenho todos esses pontos de referência e esses sentimentos que são parte de quem eu sou, que me constroem. Eles estão constantemente me guiando e eu confio neles. Eu confio em todos os sentimentos que me ocorrem.

O quanto do baixo é definido e o quanto é improvisado na hora?
Eu gosto de não saber o que vou tocar. Eu sei o sentimento do que vou tocar e sei o que eu anseio disso, mas eu vou confiar nos meus dedos, no meu sistema nervoso, no meu cérebro e na minha relação com Deus para dar certo. Eu só quero arrasar. Só quero deixar acontecer.

Você treina ensaia bastante?
Eu ensaio, faço minha rotina. Faço minhas coisas. Eu estudo. Eu amo música. Eu amo o baixo. Eu sinto mais felicidade pegando o meu baixo e segurando nas minhas mãos do que já senti na vida. Eu amo tocar essa coisa. Eu tenho o meu ’61 Fender Jazz e eu adoro a leveza dele, a suavidade do braço. Eu seguro nas minhas mãos e tudo no mundo está certo.

Eu adoro a humildade das linhas de guitarra do John. Ele obviamente não sente que precisa impressionar no ponto em que estamos.
O John é absurdamente bom. Ele está mais capaz tecnicamente do nunca. Ele pode tocar qualquer coisa. O conhecimento de música dele é uma enciclopédia. O gosto dele é ótimo. Ele está sempre se desenvolvendo, crescendo, mudando, ele vem do lugar mais puro, com a maior integridade. E, tendo dito tudo isso, o que tem sido uma alegria para mim, tocando com ele dessa vez, é a humildade que vem com essa escassez. Ele não tem vontade, nem um pouco, de impressionar. Ele só quer criar boa música. A visão dele da música está tão além do ego. Ele compõe uma linda progressão de acorde e melodia e com isso, ele confia em mim para fazer minha parte.

Nesses mesmo assunto, todos nós começamos nossa carreira querendo impressionar com nosso talento no baixo e quando amadurecemos isso fica para trás. Quando isso aconteceu para você?
Eu não sei se realmente tive essa vontade, conscientemente pelo menos, de impressionar. Claro que eu adora Jaco, Stanley Clarke, Marcus Miller e todos esses ótimos baixistas, mas eu queria ter o meu próprio sonido e meu próprio estilo que se parecesse comigo.
Talvez aí estivesse a minha arrogância, principalmente no início dos Chili Peppers quando estava muito ocupado, com rápidas semicolcheias tocadas agressivamente. Eu curtia punk rock e o funk que eu amo meio que vinha junto da violência do punk rock que eu sentia nas ruas quando jovem, sabe? Eu não sei…Eu sempre amei amei uma linha de baixo doce e melancólica também. Simplesmente não fazia sentido que eu fizesse isso. Mesmo naquela época em que eu estava tocando toda aquela coisa intensa, nós ainda fazíamos uma música como Baby Appeal (do álbum de estreia auto intitulado de 1984), que era tão simples. Eu adoro bandas com linhas de baixo simples como Gang of Four ou Echo & The Bunnymen. Na época que produzimos Blood Sugar Sex Magik, eu senti o valor de tocar o baixo de forma simples. Naquela época eu curtia Neil Young e o som do baixista do Crazy Horse, Billy Talbot. Era tão pesado. Ele tocava uma nota raíz e uma semínima e te virava do avesso com a beleza e a intensidade disso. Mas ao mesmo tempo, eu nunca poderia me afastar da intensidade deo ataque mais brutal e rápido de Charlie Mingus. Cara, eu amo demais o Mingus.

Você já parou para pensar que no começo de 2022 sem completam 30 anos desde que “Under The Bridge” e outros singles de Blood Sugar Sex Magik foram lançados?
Eu não pensei nisso. De vez em quando eu olho as redes socias e vejo as pessoas dizendo que é o aniversário de 20 ou 30 anos de alguma coisa e eu penso “Legal”. Eu sou grato que as pessoas se importem, mas eu penso algo mais do tipo “Caramba, eu preciso trabalhar no meu solo porque eu não ensaiei o suficiente”. A leveza e o peso do tempo é algo que eu sinto diariamente, como todo ser humano, principalmente conforme envelheço, eu sou muito agradecido de ser humano, ha ha!.

Você toca baixo hoje do mes mo jeito que tocava 30 anos atrás?
Eu espero estar melhor. Eu sinto que estou melhor. Estou sempre descobrindo coisas, tentando evoluir. Eu gosto de pensar as melhores partes de mim naquela época, eu guardei e me livrei das partes que não precisava. Eu tento acrescentar partes mais necessárias e ficar melhor. Eu quero muito ser um bom baixista de jazz – isso é algo que eu realmente quero, sempre que tiver tempo. Eu estive estudando um pouco com alguém quando terminamos de gravar o último álbum dos Chili Peppers. Eu estava estudando jazz com uma garota que tinha um marido que tocou saxofone no nosso álbum, estava estudando como tocar no meio das mudanças de walking bass, porque o contrabaixo tem o som mais reconfortante para mim. Eu lembro de quando estávamos gravando Californication, estávamos sentados no lounge do estúdio e o John estava perguntando “Qual é a música mais significativa que você ouve e é como simplesmente respirar?” Eu percebi que para mim é o jazz, principalmente porque eu gostava disso quando era criança. Eu não sei como tocar a maioria dessas músicas, então é algo que sempre estou buscando.

Teoricamente, você poderia fazer um projeto de jazz à parte se quisesse?
Eu poderia, eu poderia. Eu adoraria, mas minha vida profissional sempre foi tão cheia que é difícil desenvolver algo assim.

Como você mantém sua habilidade?
Bom, quando estamos em turnê eu toco muito. Estamos fazendo shows o tempo todo e eu toco em escalas de uma hora antes de cada show. Um fato sobre os Chili Peppers é que nunca, nem por um segundo, nós desvalorizamos o público ou pensamos “Vamos sair e tocar os hits”. Eu sempre considero cada show como um momento sagrado, parte da missão de estar vivo. Então eu me mantenho afiado. Estou pronto. Estou pronto!

Como as mãos e os ombros estão aguentando depois de 40 anos tocando baixo?
Mais fortes do que nunca. Eu pratico, mas também sei quando é hora de descansar. Eu gosto muito de manter a forma, o que eu acredito ser importante. Não posso falar por todo mundo, mas para mim, os meus sentimentos e percepções ficam mais profundos conforme envelheço. Eu acho que isso acontece em todas as partes da vida, mas você se torna mais consciente disso quando fica mais velho. Eu vou fazer 60 anos no meu próximo aniversário e eu tenho muitos amigos que não são assim. Eu entendo, eu tenho uma preguiça do caramba, mas se você decide fazer algo, você quer fazê-la tão bem quanto pode e eu me importo com a felicidade e longevidade também.

Quando você sair em turnê, vai levar o seu ’61 Fender Jazz ou o modelo autografado da Fender baseado nele, ou os dois?
Eu vou levar várias Fenders. Eu geralmente deixo a ’61 em casa ou uso como meu baixo enquanto estou no hotel. Com baixos antigos como esse, com esses captadores antigos, é difícil articular coisas rápidas como “Nobody Weird Like Me”. Um captador mais modern funciona melhor num estádio ou arena.

Já teve vontade de sacar um baixo Modulus em nome dos velhos tempos?
Eu poderia, mas os amplificadores e tudo o mais teria que mudar. Eu estou mudando de amplificador nesse turnê pela primeira vez em um longo tempo. No estúdio, eu comecei tocando com Ampeg SVTs e estou mudando para eles no ao vivo. Para ser sincero, eu nunca me importei. Você está levando seu coração e seus dedos e isso é tudo o que importa, mas eu tenho gostado bastante deles – eles são o centro e a característica do som que eu amo.

O que você ainda tem a realizar?
Eu quero ser um bom músico, cara.

Você não acha que já atingiu isso?
Bom, eu tenho o meu jeito, mas eu quero ser melhor. Os objetivos especificos que eu tenho como baixista são de me tornar um melhor solista, e eu quero expandir o meu conhecimento de progressão de acorde e linhas de baixo para poder ser um bom baixista de jazz. E eu quero tocar mais intensamente do que nunca. Eu quero mexer com a alma das pessoas quando tocamos. E eu quero ser um bom colega de banda – eu quero me conectar com os meus amigos de banda, ser um grande apoio para eles e ajudá-los a serem o melhor que puderem. Eu amo a minha banda e estou muito orgulhoso da música que fizemos. Ela é linda. Eu acho que é o melhor que podemos fazer, eu sinto que estamos indo muito bem e no auge da nossa performance, e eu só quero continuar fazendo todas essas coisas.

O que te faz feliz, Flea?
Amor. Eu tento viver uma vida onde estou criando isso, construindo pontes, ainda que com pessoas das quais eu discorde. Eu tento construir pontes com diferentes comunidades onde moro, diferentes pessoas. Isso é muito importante para mim Eu espero que possamos construir pontes de amor em todo lugar que vamos. Eu acredito que é onde a felicidade está no futuro. A possiblidade disso está dentro de todos nós.

Por dentro de “Give It Away”

Uma nostálgica retrospectiva do, comprovadamente, melhor momento do Flea em Blood Sugar Sex Magik (1991)
Um dos marcos de Blood Sugar Sex Magik é a música que tem o maior estilo Chili Peppers, a implacável Give It Away. Removida do álbum Mother’s Milk, a música foi e se mantém como o melhor exemplo remancescente de funk moderno a surgir em anos. Atualmente, o fã de longa data do RHCP não consegue ouvir a intro – um acorde de bend do John Frusciante e um staccato na caixa do Chad Smith – sem dar um soco no ar. Assim como os singles de rock da época – Smells Like Teen Spirit do Nirvana e Enter Sandman do Metallica – Give It Away tem sido uma influência por tanto tempo que inevitavelmente evoca emoçoes dos anos 90.
Mas há um motivo pelo qual Give It Away se tornou um modelo: é, sem dúvida um dos singles mais pegajosos a ser lançado nas últimas décadas. Ao ouvir uma vez, ela se fixa profundamente na cabeça e não pode ser removida. É o conjunto de duas coisas. Em primeiro lugar, a linha de baixo simples e elegante do Flea – um simples upper register acompanhado de 3 notas – está entre suas performances mais excepcionais até hoje, levando em conta a filosofia de menos é mais, da qual ele frequentemente comentou no álbum BSSM. Somente em uma ou duas ocasiões demonstrando as habilidades que o tornaram famoso, fazendo de todo o esforço um super aula de gerenciamento.
A reputação do Flea como um grande baixista quase o desvio em um momento. “O John Lydon” diz Anthony Kiedis, “tentou influenciar o Flea para na sua imagem pública… E Malcolm MacLaren tentou influenciar a banda toda. Ele sentou conosco, nos viu ensaiar e disse ‘Ok, esse é o plano. Nós vamos simplificar a música completamente para que seja um rock básico, antigo, de três acordes e o Anthony será o centro das atenções e vocês serão a banda de apoio fazendo essa coisa de surf-punk’. Naquela hora o Flea ajoelhou e desmaiou. Pode ter sido por algo que fumamos – éramos muito problemáticos naquela época – mas eu acho que foi pelo que o MacLaren disse”
Em segundo lugar, o vocal de Anthony – o mais próximo de um rap ao invés de só cantar, é o que traz no álbum – permanece num repetitivo “Give it away, give it away, give it away now”, em que ele pronuncia perfeitamente em questão de segundos. É uma fantástica parte de acrobacias vocais e ainda mais impressionante visto que Kiedis não é conhecido pela velocidade ou destreza de seus vocais, até então.
A música teve um impacto profundo. Kiedis explicou depois “Eu estava comprando brinquedos em Nova York antes do Natal e uma garotinha estava puxando o casaco da mãe, apontando para mim e dizendo ‘É ele, é ele’. A mãe dela veio e disse ‘Eu preciso te agradecer, você facilitou a minha vida’. Ela disse que o único jeito de conseguir vestir a filha dela de manhã era tocando o nosso álbum e cantando para ela. E para mim, a admiração de uma criança é o maior elogio.”

Tradução: Amanda Colombo

RHCP at Fonda Theater (photo: Pavel Suslov)
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